O Arquivo dos Diários está a recolher histórias de migrantes



 

Há mais de cinco anos que Lisboa tem um Arquivo dos Diários, projecto que tem agora um novo capítulo: Diários de Migrantes.

 

Escrito por 

Renata Lima Lobo

 

A associação Arquivo dos Diários quer ouvir as histórias dos estrangeiros a residir em três freguesias alfacinhas: ​​Santa Maria Maior, Arroios e Misericórdia. A iniciativa chama-se Diários de Migrantes e é a mais recente deste projecto, que quer ampliar o conhecimento colectivo através de narrativas individuais. Neste caso, ajudando a construir cerca de 60 diários pessoais com histórias que revelam percursos migratórios ou a vida de migrantes a residir em Lisboa.

O Arquivo dos Diários está guardado na Biblioteca de São Lázaro, a mais antiga da cidade, onde estão guardadas as dezenas de diários recolhidos até agora. Uma colecção que vai crescer ao longo dos próximos dois anos e meio, o tempo de duração previsto para esta nova iniciativa da associação, focada nas comunidades migrantes de Lisboa. Os participantes não precisam de ter já um diário feito. Nem têm de o escrever.

 
“Nesta primeira fase estivemos a fazer um mapeamento de território. E o Diários de Migrantes é diferente, as pessoas vão construir os diários durante o projecto, até Abril do próximo ano. E vão estar acompanhadas por mediadores culturais”, explica Clara Barbacini, italiana radicada em Lisboa e fundadora do Arquivo dos Diários. Estes mediadores, que fazem a ponte entre associações locais e possíveis diaristas, não irão interferir no diário, mas estarão disponíveis para que os participantes, não querendo escrever, possam contar as suas histórias através de áudio, vídeo ou até acrescentando fotografias ou desenhos.

Financiado pelo Fundo Social Europeu e pela Câmara Municipal Lisboa, em colaboração com a Rede DLBC Lisboa – Associação para o Desenvolvimento Local de Base Comunitária em Lisboa, o Diários de Migrantes quer promover o diálogo intercultural e a informação sobre os percursos migratórios dentro destes territórios, ajudando a quebrar preconceitos e a integrar as comunidades migrantes na cidade. “É importante que não sejam números, estatísticas, e que se perceba porque é que têm de sair dos países deles. E também que não é só uma emigração de desespero, há histórias diferentes”, explica Clara, que já esteve em contacto com futuros diaristas. Como um migrante que ficou preso na Líbia e trabalhou nos campos de Itália por 3€ a hora, antes de cá chegar. “Achou o projecto interessantíssimo, porque achava necessário ter voz e contar o que se passa nessas rotas de migração.”

Em todo o caso, independentemente das iniciativas lançadas, qualquer pessoa, a qualquer altura, se pode dirigir à Biblioteca de São Lázaro para partilhar arquivos escondidos nos baús, sótãos e gavetas lá de casa e enriquecer este arquivo que é de todos nós.

 

Biblioteca de São Lázaro, Arquivo dos Diários
Fotografia: Gabriell VieiraBiblioteca de São Lázaro

 

As páginas já escritas

Entregar um diário a um estranho pode parecer estranho. É um objecto normalmente fechado a sete chaves, mas há mais de cinco anos que a associação Arquivo dos Diários desafia os lisboetas a entregarem os seus originais para ajudar a contar a história de todos a partir da história de cada um. É que num diário, entre amores, desamores e desabafos, também se contam histórias que se cruzam com a história da humanidade. São testemunhos que podem ajudar a preencher espaços em branco dos manuais académicos, micro-experiências que podem enriquecer a compreensão dos tempos em que foram escritos.

O Arquivo dos Diários foi inspirado no Archivio Diaristico Nazionale de Pieve Santo Stefano, criado há mais de três décadas por um jornalista da Toscana. O primeiro desafio apresentado pelo arquivo lisboeta foi o concurso “Conta-nos e conta connosco”, lançado em 2015, uma forma de promover a recolha de material autobiográfico, tendo por objectivo a publicação da melhor história em livro, a editar pela Penguin Random House.

O vencedor da primeira edição foi Fernando de Castro, que viu o seu livro O Meu Diário de Campanha ser lançado em 2017, um valioso testemunho pessoal sobre a trágica participação portuguesa na I Guerra Mundial. E no ano seguinte foi o diarista Amândio Martins que venceu o concurso, vendo as suas memórias resgatadas no livro Pedaços de Alma, que acompanha a vida do autor entre o Douro, os Açores, Moçambique, Timor e Paris, na década de 40 do século passado. O vencedor da terceira edição também já foi seleccionado, embora o livro só chegue às prateleiras mais para o final do ano. Chama-se O Meu Diário e tem origem num manuscrito de Daniel Costa, ex-combatente na Guerra Colonial que deixou um testemunho sobre o quotidiano do Esquadrão 297, estacionado em Angola, entre o início de 1962 e Abril de 1964.

 

Biblioteca de São Lázaro
Fotografia: Gabriell VieiraDiário de Sebastião Costa na estante do Arquivo dos Diários

 

O cunhado e a caixa de sapatos

O Arquivo dos Diários tem, na Biblioteca de São Lázaro, uma estante onde se guardam as muitas histórias que diaristas e familiares ali fazem chegar. Mas uma história acaba por se destacar, embora parta de um diário que foi entregue de forma anónima. Trata-se de mais um diário de guerra datado de 1917, a mesma época relatada em O Meu Diário de Campanha, o primeiro livro editado pelo Arquivo dos Diários. É da autoria do soldado que partilhou camarata com Fernando de Castro, mais concretamente o seu cunhado Sebastião Costa, filho do antigo Presidente da República Afonso Costa. Em destaque estão também 12 diários que chegaram numa caixa de sapatos, escritos e desenhados por um artista de vitrais, claramente perfeccionista.

Biblioteca de São Lázaro. Rua do Saco, 1 (Campo Mártires da Pátria). Seg-Sex 11.00-13.00, 14.00-19.00. www.arquivodosdiarios.pt

 

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